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Quem foi Padre Anchieta, o primeiro “repórter” de natureza do Brasil
Ao pensar em Padre Anchieta a imagem que vem à cabeça é de um pregador muito sereno, um pouco franzino e corcunda escrevendo na areia com o cajado, cercado por gaivotas. A cena que inspirou diversas obras de arte reproduz o momento em que o padre compôs os 4.172 versos do poema à Virgem, que fez durante os cinco meses em que foi prisioneiro dos índios em Iperoig, hoje Ubatuba.
Foi no ano de 1563, quando os Tamoios, com apoio dos franceses, se rebelaram contra a colonização portuguesa. Anchieta se ofereceu como refém na aldeia enquanto Manuel da Nóbrega, chefe da primeira missão jesuíta no Brasil, partiu para negociar a paz em São Vicente.
O fato em si já revela um perfil um pouco diferente do que as pinturas sugerem. Quando escreveu o poema, Anchieta tinha 29 anos e estava longe de ser uma pessoa pacata. Pelo contrário. Foi destemido o bastante para se oferecer como prisioneiro correndo o risco de ser morto e comido pelos índios. Os Tupinambá do século XVI costumavam se alimentar da carne dos prisioneiros como ele mesmo relatou em muitas de suas cartas.
“Esta parte da região brasílica que habitamos é povoada por índios que usam todos comer em seus banquetes carne humana. Comumente caminham mais de 300 milhas para a guerra, se reduzem ao cativeiro quatro ou cinco dos inimigos, voltam sem mais outro motivo e os comem com grande festa de cantares”, escreveu em 1554.
Mesmo antes de ser prisioneiro, ele já tinha aprendido a falar com e como os índios: em voz alta e veemência! “No cativeiro resistiu à tentação das mulheres oferecidas pelos Tupinambá, cortesia comum aos prisioneiros antes da morte. Para manter a castidade, prometeu à Nossa Senhora que escreveria um poema em sua homenagem”, conta o padre jesuíta Cesar Augusto dos Santos, Mestre em História do Brasil Colonial e vice-postulador (principal defensor) da canonização de Anchieta.
O Santo, conta padre Cesar, é um dos poucos reconhecidos pela igreja sem ter nenhum milagre documentado e, por isso, o processo foi um dos mais demorados da história. O pedido de canonização havia sido oficializado pelos jesuítas brasileiros em 1597 e só foi sacramentado em 2014 pelo Papa Francisco, o primeiro papa jesuíta. Antes, em 1980, ele tinha sido beatificado pelo Papa João Paulo II. Um dos argumentos em favor de Anchieta foi o fato de ter se livrado do cativeiro são e casto.
Mas esta não é a única singularidade no perfil e na trajetória desse espanhol nascido nas Ilhas Canárias enviado para a “Terra Brasilis” aos 19 anos por conta de um problema na coluna e nas articulações (os médicos recomendaram que ele morasse em um lugar com clima similar ao do seu nascimento). Anchieta foi um dos poucos europeus que tentaram compreender a natureza e o povo brasileiros, enquanto a maioria dos colonizadores só se preocupava em explorar a nova terra.
Ele aprendeu a língua dos indígenas e escreveu a primeira gramática Tupi: A Arte da Gramática da Língua Mais Usada na Costa do Brasil. Usando elementos da cultura dos povos nativos, montou peças de teatro para catequizar os índios. Uma de suas maiores lutas era convencê-los a abandonar a prática de comer carne humana e, na maioria das vezes, teve sucesso.
O padre jesuíta também participou da fundação de escolas, igrejas e cidades. Foi um dos fundadores do Colégio de São Paulo de Piratininga (hoje Pateo do Collegio), que deu origem à cidade de São Paulo. Também esteve na fundação do Rio de Janeiro.
No Rio, o padre transformou alas de uma escola em enfermaria, dando origem ao que seria depois a Santa Casa da cidade. Como Provincial da Companhia de Jesus no Brasil, promoveu a expansão e a interiorização do país, realizando o sonho de Nóbrega, que não queria ficar restrito ao litoral.
Mas foi ao documentar a Mata Atlântica que Anchieta deixou um dos seus maiores legados. Podemos dizer que ele foi o primeiro “repórter de natureza” do Brasil, mesmo que inconscientemente. Nas cartas que enviava trimestralmente para os superiores na Europa, o jesuíta descrevia plantas, bichos e paisagens dos quais colegas do outro lado do Atlântico nunca tinham ouvido falar.
“Todo o Brasil é um jardim em frescura e bosque e não se vê em um dia do o ano árvore nem erva seca. Os arvoredos se vão às nuvens de admirável altura e grossura e variedade de espécies. Muitos dão bons frutos e o que lhes dá graça é que há neles muitos passarinhos de grande formosura e variedade e em seu canto não dão vantagem aos rouxinóis, pintassilgos, colorinos, e canários de Portugal e fazem uma harmonia quando um homem vai por este caminho, que é para louvar ao Senhor, e os bosques são tão frescos que os lindos e artificiais de Portugal ficam muito abaixo”, escreveu, em 1585.
Uma carta em especial, escrita em maio de 1560 em São Vicente, é considerada o primeiro documento sobre a Mata Atlântica. Numa época em que as onças não tinham esse nome, Anchieta informou: “Encontram-se entre nós as panteras, das quais há duas variedades: umas são cor de veado, menores essas e mais bravias (onça-parda). Outras são malhadas e pintadas de várias cores (onça-pintada). Destas encontram-se em todos os lugares. Os machos, pelo menos, excedem no tamanho a um carneiro, embora grande, pois as fêmeas são menores. São em tudo semelhantes aos gatos e boas para se comerem, o que experimentamos algumas vezes”.
É por causa dessa carta que o Brasil comemora o dia da Mata Atlântica em 27 de maio. E é graças ao padre jovem, destemido e curioso, aberto a conhecer e entender a nova terra, que sabemos hoje como era a nossa natureza no século XVI. Restaram pouco mais de 10% de tudo que Anchieta viu nos anos de 1500. O lema do jesuíta inspira muitos dos que lutam pela conservação da floresta: Coragem e fé!